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Aqui estamos novamente. Mais um fim de semana pela frente. Já sextou e agora sabadou. Prepare o seu café que vamos explorar mais uma vez as histórias escondidas nas paredes da sua cozinha. Ou talvez fora dela… Você já foi buscar o pão?
Nesses dias frios a cozinha é um ambiente bem aconchegante, ainda mais com o cheiro do café e do pão quentinho. Tenho certeza que vocês, caros leitores, inteligentes e responsáveis que são, acordam cedo para dar um jeito de colocar o pão na mesa e poder desfrutar do café com tudo o que tem direito neste fim de semana.
Nesta pequena jornada de ir buscar o pão[1] você pode não ter se dado conta, mas passou brevemente por toda a história da humanidade, da descida das árvores à conquista espacial. É tudo muito concentrado e embutido, mas tudo o que você fez desde acordar protegido em sua cama, em seu quarto, se vestir, sair de casa, se deslocar em uma cidade, entrar em um comércio, escolher um produto, negociar o pagamento (crédito ou débito? aproximação?), encontrar aquele conhecido na fila para fazer qualquer comentário sobre a vida, a política (melhor não) ou o futebol. Tudo isso é possível porque algumas pessoas há cerca de dez mil anos resolveram dar uma atenção especial a uma gramínea, lá naquela região do famoso vale entre os rios Tigre e Eufrates.
Em algum período de seca elas olharam uma plantinha com algumas sementes, não era muito convidativa, mas não tinham muitas outras opções e estavam com fome. Provaram a semente. Sem gosto, mas sentiram um potencial ali. Comeram algumas e resolveram carregar um pouco mais em sua jornada rumo a algum outro lugar com mais opções no cardápio. Eram sementes que duravam muito tempo e saciavam a fome de certa forma. Até que alguém teve uma ideia:
— Ei! Peraí! E se… a gente triturasse essas sementes?
— Sério? Você só pensa em triturar as coisas?
— Mano, quantos anos você tem? Doze? tu só não tritura porque ainda tem todos os dentes. Espere chegar aos dezoito!
Não precisou de muito tempo para chover nessas sementes trituradas, que formaram uma pasta. Alguém teve a brilhante ideia de tentar secar na fogueira. Por acaso aquela massa endurecida acompanhava muito bem a caça. Também era ótima para comer logo ao acordar, com um pouco de banha e infusão de ervas.
Dava para estocar por dias, por fases da lua inteiras, para o inverno. Mas como estocar? Alguém pensou em estocar enterrada, assim a tribo da colina de baixo (Deuses nos livrem! Aqueles bárbaros!) nunca iria descobrir e roubar essa descoberta. E alguns dias depois a grama estava nascendo por todo o acampamento! Interessante, pensaram alguns. Algumas pessoas resolveram então tirar o barro do chão, moldar uma cuia e deixar secar no sol, ou no fogo - ficava melhor ainda. Nesses potes de barro seco as sementes duravam mais.
Mas os potes da mãe Urtura ainda não tinham tampas muito adequadas, e na última chuva se encheram de água. Ela não percebeu, pois naquele período o vale ainda estava cheio de frutas e pequenas caças, o pão podia ficar para outro período. Quando ela foi conferir, os potes tinham água bem amarga, o primeiro impulso era de jogar tudo fora, mas por algum motivo achou melhor deixar ali, vai que preciso disso depois? Em um dia mais seco ela resolveu provar essa água amarga, até que não parecia tão ruim assim, e chamou seus parentes e amigos para provar também. A água amarga os deixava alegres.
O resto é história. Com a armazenagem, as pessoas não precisavam mais sair vagando por aí atrás da caça. Dava para ficar no mesmo lugar. E ficando, dava para pensar em casas mais sólidas do que aquelas tendas de pele e galhos. Casas de barro, levavam várias fases da lua para serem construídas mas depois eram muito mais confortáveis. O problema era que começaram a surgir casas demais, estava virando uma bagunça e alguém precisa controlar isso! Também começaram a surgir pessoas que não tinham mais tempo de plantar e colher, quem dirá caçar e pescar. Elas tinham que construir, que planejar, que contar[2] se a quantidade de grãos que elas tinham seria suficiente… Aí já estava esboçado o mundo que pelo qual você passou até o caminho da padaria.
Mas o que é a história, senão o ponto de vista dos vencedores? Ou pelo menos dos contadores de história? Claro, sempre há outros pontos de vista… Se o trigo pudesse contar essa história, como ele se sairia? Quem seria o domesticado e quem é que de um pequeno vale conquistou o mundo todo? Não perca, semana que vem, nesta mesma hora, neste mesmo canal!
Notas:
Este é um texto conceitual. Provavelmente a visão histórica desta newsletter está longe de ser precisa conceitualmente. Costumamos ter uma visão da história linear, uniforme, progressiva (na qual vamos do mais primitivo para uma sociedade mais sofisticada) e determinística (na qual a “tecnologia” evolui independente de nossas escolhas). Eu mesmo acho difícil me desvencilhar desta visão. Ainda assim, de alguma forma me baseei um pouco na visão do livro Sapiens, do Yuval Harari (Amazon), o qual confesso que li uns 4 anos atrás.
Por isso estou ansioso para o lançamento livro O despertar de tudo: uma nova história da humanidade do David Graeber e do David Wengrow (Amazon). Há um ótimo review do livro que saiu na The Atlantic (em inglês). Baseado em toneladas de estudos e descobertas arqueológicas, os autores reescrevem essa noção, começando pelas sociedades de caçadores e coletores, mostrando que tudo o que nos torna humanos já estava lá, e que toda a nossa “evolução” foi uma escolha consciente, deliberada e coletiva. A história não é uniforme e nem concentrada nos grandes impérios. Como tudo que existe, a realidade é muito mais complexa, confusa e caótica do que fingimos ser.
Inclusive há indícios de que os primeiros assentamentos sedentários são mais antigos que a própria agricultura (ao contrário do que fiz no meu texto).
Tudo bem se não foi hoje cedo, não vou julgar… mas pelo menos coloque o pão um pouquinho no forno para o bem do clima aconchegante que estou tentando criar aqui. ↩︎
Muita ênfase no contar. Devemos muito aos contadores, pense que graças a eles, temos a matemática, o ábaco, e se forçarmos BEM a barra, o que é esse dispositivo que você está usando agora para ler esse texto senão um ábaco hiper-avançado? Aguardem os próximos capítulos! ↩︎
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